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Literatura negra: “Escrevivências”

Por Lara Tannus via CCSP

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil


A teoria literária brasileira vem se construindo desde a ascensão das ciências sociais no Brasil e foi consolidada a partir de autores que receberam formação na linha ideológica europeia – uma vez que era a única formação institucionalizada existente num país que buscava se modernizar. As chamadas Missões Francesas consistiram em trazer professores franceses para formar os futuros intelectuais brasileiros.


Esses autores foram responsáveis por elaborar a crítica literária a partir das leituras dos diversos escritores e poetas, inseridos em seus determinados movimentos. Aqui, daremos mais atenção às produções desde o final do século 19 até o 21. A razão disso é a ascensão do romantismo brasileiro, pois foi o momento em que surgiu a disposição a se pensar a construção do Brasil como nação, com pauta nas ideias republicanas e pelo fim do regime escravocrata. E se vamos tratar de literatura negra, é importante refletir como o País se construiu em sua narrativa identitária.


As teorias e críticas de nossa literatura, assim como o foco da formação histórica do Brasil, estão ainda em construção e, portanto não foram suficientes para entender a estrutura extremamente racista que ainda carregamos na nossa sociedade. A literatura sempre teve em sua produção a essência política, não só pelo tema da narrativa, mas pela escolha de personagens e suas posições.


Escritores e poetas negros foram tangenciados no cânone literário brasileiro, abarcando num esquecimento problemático para o entendimento do que é o nosso país. Ao longo da história, as heranças afrodescendentes se consolidaram por meio da música, da dança, da culinária e da cultura em geral, e de fato a sociedade não tem a pretensão de negar isso. Um dos problemas se encontra na produção literária: A literatura afro-brasileira é negada, como se não tivesse que pertencer à escrita.


A começar pelo embranquecimento de Machado de Assis, considerado um dos maiores – se não o maior – escritores brasileiros, que se consolidou na literatura por seus vários contos e romances. Vale ressaltar que sua obra se dirigia mais à crítica à elite branca brasileira do que a uma escrita pela memória, pela representatividade e pela identidade negra.


Outra tentativa de embranquecimento foi na obra A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães. Em sua escrita, o autor tenta desconfigurar a escrava para ser heroína, ocultando sua aparência negra, tanto pelas características físicas quanto em seus valores.


Nossa teoria literária foi muito mais focada na análise das nuances entre os movimentos realismo, romantismo, modernismo e parnasiasmo, culminando na desatenção a outros aspectos nas obras dos escritores negros reconhecidos pela crítica, como os textos políticos de Cruz e Souza, poeta catarinense, que não ganharam tanta atenção quanto às características simbolistas de sua obra.


Além disso, é preciso entender que a posição do negro na literatura ao longo dos últimos séculos encontrou-se muito mais como tema do que na posição de autoria. Brancos que escrevem sobre negros dão margem a retratos estereotipados que inserem a população afro-descendente em papéis muitas vezes simplificados e determinados que acabam se consolidando no imaginário social. Questões como machismo, intolerância religiosa, sexualização e primitivismo são apenas alguns dos conteúdos centrais que permeiam os retratos dos negros na literatura, como, por exemplo, a personagem Rita Baiana, no romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo, sendo um corpo-objeto do homem branco e caracterizada como a negra assanhada, ou mesmo a Tia Anastácia, personagem de Sítio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro Lobato, retratada como a ignorante assustada que acredita em “mitos” e que tem seu espaço cênico determinado: a cozinha.


Ainda, a literatura do século 20 apresentou a questão da mestiçagem – ideia defendida por Jorge Amado –, que depositava a crença no fim do racismo pela miscigenação entre as raças brancas e negras. Essa é uma questão extremamente problemática, pois significa a tentativa de apagamento histórico das matrizes africanas em nossa sociedade. Além disso, importante destacar que, como bem pontua a escritora, professora e pesquisadora Conceição Evaristo, a população afro-descendente nunca esteve no projeto de identidade nacional. O português como fundador da pátria, se encontraria com o índio, o nativo, e assim justificaria a colonização. Esse conceito, englobado no movimento literário indianista, não só é irreal como exclui completamente o negro da história, sendo este apenas o sujeito escravizado.


No entanto, na contramão desse passado, temos os(as) escritores(as) que infelizmente são pouco estudados(as) nas escolas e universidades, como Abdias Nascimento, Ruth Guimarães, Paulo Colina, Nei Lopes e Maria Firmina dos Reis, sendo esta a primeira escritora a produzir um romance abolicionista e a colocar o negro como sujeito da moralidade.


Autora de grande circulação e primeira professora concursada do estado do Maranhão – um dos centros culturais do Brasil no século 19 –, Reis condenou a escravidão a partir de relatos do navio negreiro, diferentemente do distanciado retrato de Castro Alves. Porém, no século 20, sua obra foi colocada na categoria de literatura marginal. E 100 anos depois o mesmo fenômeno aconteceu: Carolina Maria de Jesus, autora que viveu em situações extremamente precárias, escreveu Quarto do Despejo, diário pessoal vendido em mais de 40 países. A autora foi colocada no lugar de “escritora favelada”, sendo pouco analisados a literariedade e o valor estético de sua obra. É evidente que sua escrita se mostrou audaciosa para o que era – ou é – considerada literatura, mas ela trouxe para as palavras, a sua miséria.


Essa aproximação da experiência que Maria Carolina de Jesus fez em sua obra foi caracterizada por Conceição Evaristo como escrevivência, que dá à literatura afro-brasileira o valor de escrita pelo já vivido. Nesse conceito, a escrita biográfica, por exemplo, não é meramente sobre um indivíduo, mas sobre o coletivo, sobre a cultura, a história e, por fim, as vivências que englobam algo maior do que o próprio sujeito.


É evidente que as escrevivências englobavam as produções de escritores(ras) do começo século 20, como Solano Trindade ou Cruz e Souza. Mas ela encontrou uma potencialidade maior nos anos 1950, auge do Movimento Negro no Brasil e no mundo, pela efervescência de resistências negras e aparecimento de figuras importantes como Martin Luther King e Nelson Mandela. Com o fortalecimento de lutas, como as reivindicações de Direitos Civis nos EUA e revoltas emancipatórias nas colônias em diversos países africanos, uma nova atmosfera contra o racismo e as desigualdades pairava, acabando por inspirar diversos meios da sociedade brasileira.


A literatura negra passou a resistir à marginalidade pela visibilidade desses movimentos e ganhou espaço mais significativo no circuito editorial. No entanto, há ainda rejeição à literatura negra. Muitos autores (inclusive afrodescendentes) defendem que a literatura deve ser universal, e negam que “a experiência de pessoas negras possa instituir um modo próprio de produzir e de conceber um texto literário”, segundo Conceição Evaristo. Porém, a questão da mulher negra, por exemplo, é imprescindível de ser entendida, tornando consequentes as produções atuais de emponderamento da mulher afrodescendente e os valores das matrizes africanas intrínsecos a elas. Hoje, escritoras negras, como Cidinha da Silva, Aline França, Ana Maria Gonçalves e muitas outras, ganham cada vez mais espaço para expor suas próprias narrativas e vivências de mundo, combatendo o patriarcalismo e o racismo tão enraizados em nossa sociedade.


Cidinha da Silva, já presente no encontro Marca-Texto, que acontece no CCSP, explora a escrita de maneira resistente ao cânone literário e traça uma relação horizontal com a sociedade, no sentido de acessibilidade linguística, mas não se desviando da qualidade literária – crítica muito utilizada por autores que não associam a literatura contemporânea à erudição dos romances clássicos.


Cronista e contista, Cidinha é autora de muitos livros, que foram traduzidos para inglês, alemão e outras línguas, mas, mesmo assim, segue marginalizada pelas instituições.


Nesse sentido, é urgente a revisão da teoria literária brasileira, assim como um espaço maior no circuito editorial de autoria negra. A memória brasileira, mais do que parecer estar perdida, ainda não foi construída por completo e esse fator acarretou numa alienação da população branca quanto ao entendimento do que é ser negro no Brasil, além de servir de legitimação de seus privilégios.


Assim, os tempos de hoje exigem não mais a interpretação intermediada da cultura negra, mas sim sua verdadeira escuta a partir do ponto de vista dos próprios sujeitos da vivência.

Revisão: Paulo Vinício de Brito

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